All for Joomla All for Webmasters
Gotas de Darma

Normose: a doença hereditária de um estilo de vida projetado

Enquanto crescemos, continuamente ouvimos uma indagação da qual nunca sabemos muito bem a resposta: “O que você quer ser quando você crescer?”. Essa pergunta, ainda que aberta na sua formulação, traz consigo uma expectativa carregada no que se considera uma boa resposta. O que o clichê esperado na réplica é uma ocupação tradicional (como médico, advogado, engenheiro). Todas identidades profissionais. Todas voltadas para uma prosperidade e métrica de bom sucesso pautadas no critério econômico. Foi o que sempre ouvimos, é o que reproduzimos. Desde o pré-escolar, temos uma visão mais ou menos caricata do que é ser bem-sucedido e aceito socialmente: uma boa profissão, casamento, bens materiais arbitrários e uma prole pra perpetuar o mesmo percurso. O nosso estilo de vida já foi projetado antes mesmo de chegarmos.

Nossos pais, que geralmente são referenciais de fortaleza que carregamos do berço (e nos quais projetamos nossas mais ingênuas idealizações de segurança), trilharam esse caminho (e provavelmente o fizeram se projetando em nossos avós). Entretanto, essa idealização que cultivamos ao longo da vida (de alcançar um lugar de estabilidade), se dissipa paulatinamente, a cada choque de realidade da vida adulta. Descobrimos que esse percurso é bem mais sinuoso e se parece muito mais como uma corda bamba do que imaginamos e que, apesar de evoluirmos em diversos aspectos, a sensação é de estar sempre equilibrando mais pratos do que conseguimos. Em algum momento, quebrando essa vidraça e olhando em retrospecto, percebemos as fragilidades e ressignificamos memórias que nos fazem perceber que nossos pais, assim como nós, também não sabiam muito bem o que estavam fazendo da vida.

Um projeto de vida ancorado nesses ideais que herdamos e que têm o processo econômico como base leva, inviavelmente, ao estímulo da competição mútua em busca de uma linha de chegada que nunca se alcança. E nesse processo, cada item do checklist imaginário idealizado que sentimos que estamos deixando de atender se torna ponto de angústia e auto-invalidação em nossa própria percepção pessoal. Afinal, a sensação gerada nessa neurose é a de que há vencedores (que é sempre algum outro que não nós). Mas esse processo adoece mesmo aqueles que, ainda segundo os critérios usuais, obtiveram algum nível de sucesso e ainda assim não encontraram essa terra prometida de bem-estar (se duvidarmos, podemos observar o processo depressivo de pessoas de destaque que não encontraram realização alguma nesse lugar). Podemos também olhar para países onde, ainda que (a nível externo) esteja tudo aparentemente bem estruturado, continuamos observando uma alta taxa de suicídio e o sentimento compartilhado de insatisfatoriedade. Ainda assim, mesmo que tenhamos alguma desconfiança de não há garantias, seguimos correndo nessa esteira, já que é o que assimilamos como normalidade no coletivo. Essa normalidade que adoece é a normose: comportamentos habituais de uma sociedade que causam sofrimento.

A essa altura é importante ressaltar que a direção do texto não é uma visão pessimista, niilista, ou mesmo evasiva. Abandonar tudo e ir pras montanhas a la Alex Supertramp não vai resolver o problema. Primeiro porque é um engano achar que ao subir a montanha (metaforica ou literalmente) o mundo fique lá em baixo. A gente leva o mundo dentro, e portanto não há pra onde fugir de nós mesmos e das nossas projeções. Segundo porque é mais nobre ficar e, dentro das nossas bolhas de realidade, tentar promover alguma pequena transformação. A consciência da ilusão de que uma felicidade genuína poderia ser pautada com base nessa normose e a diminuição de impulsos que estimulem esse comportamento neurótico em nossos meios já nos removem de alguns auto-enganos. Se pudermos nos entregar em uma feliz rendição da tentativa inalcançável de fazer dar certo e de ser, em algum nível, bem sucedido nesses critérios arbitrários e, mais além (e o principal), se pudermos fazer isso coletivamente (ainda que começando em pequenos grupos), talvez possamos reforçar outros pontos que talvez definam melhor quem somos do que a nossa conta bancária. Por enquanto, entretanto, a resposta para “o que você faz?” de forma simplista continua sendo, por padrão, a nossa profissão.

“A dificuldade que nós estamos vivendo vem pela predominância da visão econômica como algo que resolve a nossa vida. Ou seja, nossa vida é assim: ter um emprego, poder comprar as coisas que a gente quer, poder viver mais ou menos como a gente quer e ter uma visão de futuro para outras coisas que a gente vai comprar… Isso não é a vida! Mas ela se torna. E então a falência desse processo vem com esse tipo de crise, com esse conflito.” – Lama Padma Samten

Desacelerar, olhar pros lados e nos permitirmos termos outras visões é um favor que fazemos a nós mesmos e às novas gerações (que já entraram no bonde da alta pressão em movimento, mas talvez se beneficiem de algum nível de liberdade no futuro). Há não muito tempo, para as gerações anteriores, essas questões mais existenciais não tinham espaço quando aquilo que os subjetivava estava muito bem definido e sólido. Hoje, boa parte das pessoas da minha idade não sabem o que fazer da vida (assim como não sabem alguns dos anciões mais sábios que conheci). Em nosso apego às identidades que sustentamos (seja ela profissional, familiar ou de qualquer cunho), muitas vezes nos solidificamos nos personagens que constantemente nascem e morrem e esquecemos que, em essência não somos nenhum deles, mas o ator que os dá vida. Várias versões nossas já morreram. Algumas das que hoje sustentamos com muito esforço inevitavelmente vão morrer. Se virmos o quão irônico (pra não dizer é quase esquizofrênico) é sofrer sobre aquilo que nós mesmos projetamos, dá pra quase rir (nem que seja de desespero).

Nesse morde-e-assopra, corre de um extremo e esquiva do outro, é importante ressaltar: somos falhos, e uma boa explicação ou racionalização, ainda que talvez desperte algum insight ou inspiração, rapidamente se perde e na primeira notificação nos distraímos. De acordo com muitas tradições de sabedoria (e a que sigo bate muito nesse ponto), a origem de nossas as complicações é o esquecimento de quem nós somos e onde realmente estamos. Entramos em nossos devaneios e pouco fazemos pra tratar a causa real, mas queremos uma solução rápida pro sintoma. Ou seja: queremos seguir fazendo o que fazemos, sem sentir o que sentimos. E como água de chuva que gotejando no solo flui por um caminho habitual, repetimos os mesmos velhos condicionamentos que cultivamos, consciente ou inconscientemente. Os mesmos velhos hábitos. Normose. Não vai dar certo.

É a minha preferida. Está tudo aí. Faz esse textão ser completamente dispensável.

Você Também Pode Gostar

Nenhum Comentário

Deixe uma Resposta